Jorge Alfredo - As linguagens rítmicas e suas diferenças. Fale sobre isso aí…
Jaime Sodré - A fortificação rítmica dos tambores é um pouco diferente. Só que, um Alabê que se respeita, um Chikarongoma que se respeita, e um Runtó, que é o tocador da Nação, têm que conhecer todas as linguagens. Então, qual é a diferença? É a pulsação pra chamar o Santo, é a batida pra chamar o Santo. Então, você não pode tocar mais lento, nem mais rápido. No Jeje, por exemplo, você tem que conhecer essa pulsação, saber tocar dentro dessa ritimia. Que hoje, eu posso dizer que tem a ver com a expressão da palavra. Se você toca o ritmo muito acelerado, você não diz o que tem de dizer pra o Vodum dançar. Então, esse dado você vai pegando depois que você vai convivendo, tocando, interpretando, vendo os outros ritos, os ritos das cultuações dos Voduns…
Nós tivemos a oportunidade de ver também os ritos fúnebres, e notar que existe uma semelhança, uma proximidade, mas os estilos são totalmente diferentes. Eu acredito o seguinte: a maior experiência que foi feita em minha vida, com essa história do Jeje, foi quando veio o Balé Do Benin. Eu e a professora Lúcia, que hoje é minha esposa, estávamos esperando chegar o povo do Balé, quando eles chegaram, e nós tocamos alguma coisa pra saudar o pessoal, o pessoal que veio de lá recebeu os Voduns, e alguns Voduns que nunca tinham vindo lá. Aí a gente se assustou: “Como é que essa célula rítmica de quase trezentos anos ficou intacta assim, pra provocar a chamada de pessoas que quase já tinham esquecido isso?”. Esse é um exemplo interessante da célula rítmica que se mantém em função do canto, da palavra, do ritmo das palavras. Aí, quando o Balé se acomodou em casa, eles resolveram saudar o lado de cá. Quando eles soltaram a madeira lá, o pessoal do lado de cá recebeu os Voduns. Pra mim, como músico, essa é a prova cabal de que uma célula rítmica penetra no seu organismo, permanece em você, e até, pode-se dizer um absurdo, ela passa geneticamente para as gerações que vêm. O convívio com aquele ritmo sabe pulsar aquele ritmo que provoca a vinda dos Voduns. Então, para tocar na Nação Jeje tem que ser especialista: o toque é feito com a aguidavis; a dinâmica é uma outra dinâmica; a divisão é uma outra divisão; a sílaba é um pouco diferente; a tonalidade vocal é feita sempre um pouco mais a cima, parece um grito muito distante. Então, isso é característica desse batuque, que eu chamo de “Batuque Sagrado dos Jejes”. Eu tive a oportunidade de presenciar vários tocadores muito competentes nisso aí, inclusive no Candomblé do Bogun, aqui na Federação. No Zocodecodumalecundó você via perfeitamente como é que se dava aquela orquestração, e como é que os mais velhos passavam para os mais novos aquele conhecimento. Com muita disciplina, com muito conhecimento de saber o que é que tava tocando. No caso de nossa gravação, é uma pessoa só que tocava todas as coisas. Nós não fizemos ainda o disco Máster, em que cada Nação toca com sua orquestração, com seus elementos. Aí você vai notar a questão de estilo.
rum, rumpi e lé Jorge Alfredo - Como assim?
Jaime Sodré - Vou te explicar. O menino aí é virtuose, ele toca em todas. Mas ele confessa, e todos os outros grandes Alabês confessam que dominam mais a sua Nação. A outra ele faz por obrigação, porque se ele chegar num terreiro de Jeje, e na porta for saudado pelos tambores, ele vai ter que tocar pra a Casa, e ter que tocar pra a Casa dele. Então, o cara tem que saber alguns elementos… Mas nada como aquele que habita naquela casa, pra tocar sabendo o que é que deve tocar. Então, essa diferença eu tenho notado quando eu vou pros terreiros. E essa diferença é importante porque estabelece a pulsação rítmica necessária a cada chamada Nação. Se você for ver Jeje no Maranhão, a pancada é outra: a batida, a pulsação é outra: é mais pesada. Inclusive, eles batem no próprio corpo do atabaque, a lateral é também utilizada como percussão, aqui é só a parte de cima. Então, essas particularidades me fazem dizer que você pode chamar o povo de Jeje, mas não pode esquecer que Jeje tem sobrenome. Cada Jeje é um Jeje de determinada região, de uma determinada característica cultural. Quando você for ver os toques dos tambores, as pulsações, você vai ver que são famílias diferentes, é por isso que a gente chama de primo. Não dá pra você fazer uma generalização, dizer que todo Jeje é igual. Quando você vai pra Cachoeira, aí você vai ver que já é outra pulsação, embora todos sejam Jejes. Isso é que me faz dizer que existem as particularidades, as orquestrações particulares, e cada um sabe como é que vai bater naquele couro.
Jorge Alfredo - Quando você dedica à Nação Jeje, pelo menos, o número de Jejes é bem menor em tamanho… Queria que você explicasse isso: O que é que tá aqui de Jeje? E como foi que você escolheu isso?
Jaime Sodré - Nesse caso aí, nós estamos com um projeto, vou lhe antecipar em primeira mão, que procura fazer a documentação específica do Jeje. É um projeto ousado que tenta pegar o Jeje do Maranhão e documentar, o Jeje de Cachoeira e documentar, e pegar o Jeje do Engenho Velho e documentar. Pra demonstrar essa minha fé no sobrenome, ou seja, cada um tem uma forma de expressar suas particularidades. E isso aí fez com que nesse disco a gente colocasse só um tempero, só uma saudação a esse povo, porque esse povo é fechado, recatado, com dificuldade de se fazer um trabalho desse tipo. Então, a gente decidiu registrar, pra mostrar essas Nações que estão em vigência aqui em Salvador. Inclusive, a gente tem a Nação Efón, que as pessoas não a consideram. O Jeje entrou como se fosse um slide que a gente fez pra chamar atenção: “olha isso aqui tem aí, mas precisa-se de todo um regime especial pra fazer essas gravações”. Como o disco não podia ter muita coisa, a gente resolveu só pontuar: colocar o Xirê completo do Keto, o Xirê completo do Bantu, em algumas músicas a parte de execução de tambores do povo Jeje.
Jorge Alfredo - Eu noto assim: as mais populares não estão no Jeje, mas tão no Efón. Por quê?
Jaime Sodré - É porque o Efón teve uma sorte, trazer o ritmo afoxé, o Ijexá. Que foi preservado nos afoxés. Coriefan toca muito essa coisa. O Gandi também tem essa referência de pulsação. Então isso ficou. E como ele tem uma facilidade de dançar, uma facilidade de se comunicar, a língua tem uma proximidade sonora da nossa língua, essas manifestações ficaram muito no ouvido da gente. A expressão lingüística do Jeje se diferencia muito do nosso cotidiano, da nossa maneira de falar. Por isso que essas músicas ficaram, porque foram perpetuadas pelos afoxés. Os afoxés adotaram como ritmo característico o Ijexá. E o Ijexá de quem é? Do Efón. E quem é o povo de Efón? O povo de Oxum. Entendeu bem? Isso é uma informação interessante, pra você ver que determinadas práticas cotidianas de execução do ritmo fazem com que ele se perpetue. Mas quanto mais o Candomblé é fechado, e o Jeje tinha suas dificuldades, tinha de ser fechado realmente, em função de uma série de divisões, confundindo o Malê, com o “Malê Malê”. “Você deve se recompor, deve usar suas contas de maneiras discretas”. Isso porque confundiam o Malê de Jeje, com o “Malê Malê”. E aí eles ficaram com esse ritmo mais guardado, e até pouco tempo a gente conseguiu fazer esse registro. O próximo registro vai ser com um trio dentro da casa, porque nós vamos registrar essas músicas.
Jorge Alfredo - Sim Jaime, quando você fala que ele consegue penetrar no outro… Onde isso está mais visível, no Iroko? Onde você acha que mais absorve?…
Jaime Sodré - Vou te dizer o seguinte… Por exemplo, você tem o banto que tradicionalmente seria tocado de mão, mas em determinado momento o banto também é tocado com a aguidavis, que é desse povo que não tocava a mão no atabaque, tinha uma distância ritual ao elemento atabaque. O outro banto acariciava o atabaque, tinha uma proximidade física ao atabaque. Esse outro tinha uma distância de respeito ao instrumento. Tanto que a própria vareta, que a gente chama de aguidavis, é também sagrada. Quer dizer, algumas varetas têm que ser feitas com alguns tipos de vegetais pra poder tocar no atabaque. Então, esse elemento, de repente, passa pra outra Nação. Não podemos deixar de entrar em detalhes, porque se eu for aprofundar a gente vai beirar os fundamentos. Mas, pro que tá sendo posto agora, é importante notar isso: as Nações têm um respeito, uma pela outra, muito interessante. Um Alabê pode se formar numa casa, mas ele tem que conhecer os outros ritmos, pra reverenciar as outras casas. Se ele vai visitar outra casa, ele tem que tocar, tocar a língua como a gente diz. Então, tem um momento em que você faz sua iniciação em determinada Nação, mas, ao mesmo tempo, você faz uma espécie de pós-graduação em todas as outras. E essa pós-graduação, em você sendo o convocador das divindades, você tem que penetrar nos fundamentos, pra saber o que vai tocar, que hora vai tocar, como vai tocar, pra fazer aquele diálogo: eu dou o ritmo, você dá a dança, volta pra mim, eu dou… Então, você percebe que também no Ketu o pessoal usa a aguidavis. Aí é importante você notar um elemento que a gente esquece nos Candomblés, a gente fica fixado no couro e na voz, e esquece de um elemento fundamental, esse é que dá a diferença: o chamado Agogô Ogam. Esse é o elemento que comanda, que preserva a memória rítmica dos toques. Geralmente é executado pela pessoa mais velha da casa, mais conhecedora, porque ele vai dar a pulsação que chama o Santo.
Jorge Alfredo - É possível dar uma explicação disso?
Jaime Sodré - É muito simples: essas pessoas detêm a onda energética provocada pelo ritmo, que faz com que o Orixá se corte, e reproduza, dentro do espaço do Terreiro, a sua própria história. Vou te dar um exemplo clássico: você não vai tocar num ritmo acelerado pra que Oxum possa fazer a sua coreografia, demonstrar a sua sensualidade… Você vai tocar num ritmo que proporcione a ela fazer a coreografia com a sua sensualidade; você não vai tocar pra Oxumaré num ritmo tão ligeiro que não permita que ela possa se curvar até o chão e fazer “O Mito”; mas em compensação com Exegoiá você pode jogar um coro mais ligeiro, porque Iansã precisa daquele redemoinho, precisa daquele movimento. Aí o coro tem que ser compatível com eles. Já pensou você tocar Iansã parecendo uma marcha lenta? O Santo para no salão e olha pra você. Se você estiver cantando errado, ele canta pra dizer qual é o ritmo certo. E se você tiver batendo errado, só prossegue se trocar aquele tocador. Então, essa questão da memória rítmica sem metrônomo, quer dizer, perpetuada no seu ouvido pra saber que um ritmo assim deve ser tocado daquela determinada maneira eu acho mais fascinante. Isso é a prova da memória. Dessa persistência de ficar guardando isso no ouvido da gente, e que vai passando de geração em geração, pra que a gente saiba tocar o toque certo.
Jorge Alfredo - Explique pra gente as diferenças básicas entre Oriki… Aqueles quatro…
Jaime Sodré - Você tem os Orikis, que você sabe que são construções poéticas, e a rítmica é a rítmica da poesia. Nós não podemos atribuir a essa rítmica a da poesia portuguesa, ou seja, tem a sua própria divisão. Suas divisões que não são feitas apenas no sentido da divisão métrica, mas também na divisão da acentuação. Não esqueça que a maioria dessas línguas, principalmente o iorubá, são línguas tonais. Você tem os tons dos acordes naquelas línguas. Aí você vê que os Orikis trabalham mais com essa atmosfera… Você tem Adurrá, que são rezas.. Aí já é outra dinâmica, uma outra pulsação que é a de orar e rezar. Essas manifestações não são acompanhadas do ritmo dos atabaques, mas quando você tem as músicas, por chamar assim, de Candomblé, elas necessitam da base rítmica para fazer o discurso. Você não pode fazer o discurso melódico sem a base rítmica. Já essas outras estruturas independem do ritmo formal dos atabaques, mas têm o seu próprio ritmo pra poder fazer a diferença entre uma coisa e outra. Aí já é uma coisa interessante que penetra fundo nos fundamentos do Candomblé, porque em determinadas circunstâncias você tem que saber a palavra certa. Você vai catar uma folha, você tem que cantar pra folha. Mas você não está no ato com tambores. Você tem que saber o ritmo que você vai cantar pra folha para que a folha desperte pra você. Mas não é toda folha que você canta com aquele ritmo, com aquela expressão, você vai pra outra e já canta de outra maneira. Essas formas de pedir licença. Cada uma tem que ser feita com muita gentileza, e com muita elegância. Porque se você não souber essa coisa que dinamiza a folha, ela se tranca lá e não faz nenhum serviço. Então, todo esse universo que eu tô passando pra você é fundamentado numa coisa fantástica que é a música, o ritmo e a fala. Ou seja, quem mobiliza os movimentos do Candomblé é a fala, ela pode ser recitada, pode ser uma oração, ou pode ser uma melodia. Sem esses elementos não tem o mito. E em função desse mito, tem o mito do silêncio, o momento do silêncio, o momento de guardar. Então, ao mesmo tempo em que você tem a possibilidade de se expressar, você também tem o momento de se calar. Que é o famoso mito do silêncio. Uma “obrigação” que se faz, pra você saber o momento em que você não fala mas se expressa, e o momento em que você fala e se expressa.
Só estou falando isso pra você, porque estou fazendo um trabalho, que vai ser apresentado num Congresso Internacional, que agora eu resolvi chamar da “alta costura do Candomblé”, que são as roupas do Candomblé. Eu estou fazendo um trabalho pra definir essa alta costura… Uma das primeiras frases, com sua licença, que eu uso é: “Um presente assim, que seja a cara dela.” Então, não é qualquer anágua vagabunda que você vai colocar num Orixá, tem que ser um presente que seja a cara dele. Então com essa frase sua eu defino essa questão da alta costura, eu digo: “se não for a cara do homem, o homem não veste!” Aí eu começo a descrever essa coisa das cores… Dos símbolos que se colocam… Aí eu digo que Jorge Alfredo já tinha usado essa frase… Aí eu penso: “Onde esse cara sacou essa expressão”? Porque o povo do Candomblé diz assim: “Olhe! Tem que ser a cara do Orixá X, viu.” Será que esse cara pegou isso? Onde foi que ele foi buscar isso aí? Mas, uma curiosidade… Você sacou isso da onde?
Jorge Alfredo - O entrevistado hoje é você… Eu queria que você me explicasse o seguinte: Quando se canta com o Adjá, que tipo de canto é esse? Tá incluído no que você falou ou é um canto diferente?
Jaime Sodré - O Adjá é um instrumento sagrado que só pode ser conduzido por aquela que tem o domínio do axé. Se chegar alguém do mesmo naipe, do mesmo nível, ela faz a gentileza de entregar. Nisso o Candomblé é sutil, é uma beleza, dar prioridade a quem chega a uma Casa pra conduzir o Santo. O atabaque e o canto conduzem a coreografia, conduzem o movimento, contam a história. O Adjá é a autoridade sobre a cabeça do indivíduo. É aquela autoridade, aquele som, aquele momento que diz: “aqui está alguém que pode chamar você”. Entendeu essa diferença? Nem todo mundo pode tocar aquele instrumento. E ele deixa de ser um instrumento, porque ele é apenas um agogô que inverteu sua posição e tem elementos internos, pra provocar um novo tipo de timbre, que é identificado pela divindade que sabe que está diante de uma autoridade. E estando diante de uma autoridade, que preferencialmente é dona de sua cabeça, é a pessoa que detém o seu axé, ela tem uma obediência em função daquele instrumento. Então, aquele instrumento independe dos toques dos tambores. Em determinadas cerimônias só é ele.
Jorge Alfredo - É como se a Mãe Santo estivesse falando diretamente…
Jaime Sodré - … pelo som. Na medida em que o Orixá vai reagir pelo universo sensorial, tanto que ele dança com os olhos fechados, ele vai se guiar pelo som. Ele vai identificar quem tem autoridade pelo padrão do som, ele vai identificar quem tem autoridade sobre ele pela energia transmitida, e por esse som silencioso daquela pessoa que ele sabe que é iniciada. Então, é um sistema de telepatia que quem está próximo tá sabendo o que tem que fazer, pra quem você tem que fazer referência. Então, o Adjá tem esse símbolo de autoridade. Vou lhe dar mais um presente: você tem no Mito de Xangô não só instrumentos, mas também os chocalho, conhece? Que vem imitar o ruído da chuva, vem trazer o discurso do trovão. Ali também é outro elemento que não é ritmo, mas é sonoro, e que tem a propriedade de indicar que aquele som pertence a determinado indivíduo, no caso Xangô. Entendeu os universos como é que são? Em determinadas circunstâncias você tem outro tipo de produção, isso muito mais ligado aos Bantos, que é o caxixi, que já substitui a execução do atabaque pra um outro tipo de ritmo em determinados ritos. Mais além você tem ritmos ligados a ritos funerários, que não vão mais utilizar coros, vão utilizar outros timbres que venham se referir, esses timbres, à memória da água ancestral, à memória da água primordial, inicial. Então, você tem toda essa catalogação de ruídos, ritmos e expressões que qualquer Alebê, que tenha prestígio e respeito pela sua função, tem que saber. Daí, a gente tem que tá sempre cuidando pra que os símbolos sagrados, de certa forma, não sejam desvirtuados, porque eles têm função específica pra mover o mundo… Daí a gente saber dessas coisas todas: quem segura o Adijá, quem segura o Agogô, o Ogam, quem vai tocar o Rum, o Rumpi e o Lé… O Rum não é pra qualquer um, é pra quem sabe fazer um diálogo, porque vai improvisar dentro de uma determinada pulsação rítmica que ele e o Vodum vão entender, ele sabe a hora que tem que dobrar e que não tem. O Rupim vai ficar no meio fazendo essa ligação, como se fosse no futebol uma espécie de meio de campo, unindo. E o Lê, que é o pequenininho, vai ficar fazendo esse acompanhamento que segue muito bem de perto o Agogô. E o Agogô vai dar a tonalidade solene do rito. Então, um bom Agogô, em uma boa Casa, você escuta de 10 Km. E você diz: “Ali sim! Ali tem axé!”
Jorge Alfredo - Quando você tava falando do Rupim e do Lê, eu me lembrei logo da associação que se faz dos três berimbaus. Do pessoal mais antigo… Diferente do que a gente vê hoje. Você, como músico, vê isso? Tem, realmente, uma ligação entre os três atabaques e os três berimbaus? Por essa coisa que conduz um movimento, na capoeira também tem o mesmo sentido…
Jaime Sodré - A capoeira, em determinados momentos, faz uma reprodução do rito do Candomblé, substituindo alguns elementos básicos do Candomblé por outros que vêm cumprir a mesma função. Então, eu diria que originalmente a capoeira tinha essa raiz muito vinculada à pratica ritual, já que nós tínhamos os três berimbaus: o “Urukungo” que dá o som grave, o “violin” e o “viola” que dão o som médio e agudo; isso é uma idéia africana da harmonização do grave, do médio, e do agudo. Mas se fosse só isso, seria apenas mera coincidência. Só que isso comanda o movimento e exige que você vá até ele e faça a referência primeiro, reconhecendo ali os mesmos movimentos que você faz no Candomblé quando o tambor dobra, se você for iniciado você vai lá e toma a benção. Então, eu até me emociono um pouco porque eu vejo ali a idéia sagrada. E a partir dali vai sendo comandado um ritmo. Na verdade, se não tiver esses três elementos, não tem capoeira. Ou seja, se não tiver o berimbau que comanda o movimento e que sacraliza o movimento, não tem capoeira. Então eu defendo a tese de que os três têm uma proximidade, e dão um tom de solenidade muito interessante. Todo mestre sabe disso. Tem também na capoeira o Agogô que dá também a metragem rítmica. O grande mestre, quando chega até uma roda, é oferecido a ele o Urukungo, o maior, não é o violinha. Então, o mesmo rito que tem lá, tem cá. Eu não digo que um imitou o outro. Eu digo que são ambos do mesmo umbigo. Um umbigo de respeito à hierarquia, um umbigo de organização melódica e rítmica, que faz com que você exercite qualquer tipo de manifestação religiosa ou luta, como é a capoeira, sempre voltado ao sagrado, sempre sabendo que você está fazendo uma coisa que tem um significado muito mais profundo do que mover o corpo. Daí, eu sempre vou olhar primeiro se a capoeira que eu estou assistindo tem axé ou não. Se ela tem axé você percebe. Se ela não tem, em nós que somos muito envolvidos com isso, dar um certo mal estar, e você diz assim: “Essa aí é pra turista!”. Aí eu fico emocionado por que tem uma derivação disso. Aí você me chama e diz: “E o baião? Olha lá o trio de novo!” Ou seja, essa questão da trindade é muito interessante. Você vai pro baião, você vai ver a mesma construção. Onde é que tá o agogô? Tá ali no triângulo. Entendeu como é a construção do trio? Então, essa coisa da trindade tem me interessado muito estudar, como base da influência africana nos ritmos. Hoje, pela manhã, eu estava vendo o Jongo, alguém fez uma reportagem no Rio, eu estava vendo os três instrumentos lá também. Aí você vai a Cuba, você vai ver os tambores batais, são três também. Então, essa trindade é a nossa característica, nossa marca.
Jorge Alfredo - Riachão, ele canta um Jongo, e ele diz assim: “Era quase Samba. Mas ainda era Jongo…”
Jaime Sodré - tá certo. Era quase samba, mas ainda era Jongo porque existe essa transição entre as coisas que são feitas… É preciso lembrar que o Jongo também é um ritmo ligado à tradição religiosa, não podemos nos esquecer desse aspecto. Mas isso é muito superficial, porque depois, vai sendo urbanizado e perdendo esse caráter de religiosidade.
Jorge Alfredo - Essa religiosidade ligada à tradição africana. Sim, mas a que Nação, a que…
Jaime Sodré - Bom, aí é Bantu. Porque os Bantus chegaram… É preciso dizer que os negros não só tocavam pra se divertir. Também para. Mas, fundamentalmente, para fazer religião. Depois vai se urbanizando, vai se modificando, a sociedade vai mudando, e vai penetrando-se em novas estâncias: vira samba, mas a célula está ali. Então, é interessante notar que todas essas manifestações rítmicas têm bases sagradas. Quando ele se transforma em folguedo é uma outra linguagem mas o fundamento tá ali, ressonando atrás. Acho interessante porque eu vejo isso ainda no Gandi, é uma expressão de rua, mas tá lá, ninguém toca mais do que quem tá ali. Você vai no Ilê Ayê, os caras fazem aquele ritmo é fantástico mas tá lá embutido. É tão fantástico que tem uma música de Oxossi, onde se funde um ritmo de Candomblé com um ritmo do Ilê Ayê, e é tudo arrumadinho, tudo bem casadinho, você vê que a célula tá ali pulsando. Então, é interessante notar os blocos que têm axé por essa energia que eles preservam em relação à ancestralidade.
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