terça-feira, 2 de junho de 2015

A reafricanização de Lisboa


Nos últimos anos assistiu-se a uma curiosa reviravolta da História: a alta burguesia angolana começou a investir na debilitada economia portuguesa



A presença africana em Lisboa é antiga e está hoje bastante bem documentada. Teve início com a ocupação árabe, no século VI, que se prolongou por mais de 400 anos, e prosseguiu, após o início da aventura marítima portuguesa, com a entrada de escravos de origem banto. Lisboa voltou a renovar essa herança, já no século XX, primeiro com a imigração cabo-verdiana e depois com a chegada de um grande número de refugiados angolanos e moçambicanos.

Gosto de passear ao longo da Rua da Esperança, na Madragoa, antigamente chamada Mocambo, subindo depois a Rua do Poço dos Negros, até chegar ao Chiado. Mocambo é um termo que tanto pode vir do quimbundo, do quicongo ou do umbundo, três das mais importantes língua de angola, com o significado de casa ou de refúgio. O Bairro do Mocambo foi criado por alvará régio em finais do século XVI e abrigava sobretudo negros livres, os quais se misturavam com famílias de pescadores e com as muitas centenas de freiras dos vários conventos estabelecidos em redor.

Nos últimos anos assistiu-se a uma curiosa reviravolta da História: a alta burguesia angolana começou a investir na debilitada economia portuguesa, adquirindo empresas, jornais e um vastíssimo patrimônio imobiliário. Num movimento paralelo, em alguns casos sustentado pelo primeiro, Lisboa vem testemunhando o sucesso crescente de músicos, escritores e artistas plásticos africanos.

Dois espetáculos recentes confirmam e celebram o triunfo da Lisboa africana. Na passada quarta-feira, Nástio Mosquito atuou no Cinema São Jorge. Sexta-feira foi a vez de Kalaf Epalanga surpreender o público, na magnífica sala do Centro Cultural de Belém, com um show único, no qual misturou textos seus sobre Lisboa com o melhor da música angolana dos anos 1950 e 60, numa releitura jazzística e intimista. Kalaf e Nastio são angolanos. Nástio foi recentemente considerado pelo jornal britânico “The Guardian“ como um dos dez artistas africanos mais influentes do nosso tempo: “Nástio é um artista multimídia e de performance, que trabalha com música, vídeo e spokenword, brincando com estereótipos africanos em contexto ocidental”. Kalaf Epalanga é um dos fundadores da mais internacional e mais premiada banda portuguesa, os Buraka Som Sistema, largamente responsável pelo sucesso planetário do kuduro. Também escritor e colunista, define-se a si próprio como agitador cultural. A influência dos Buraka, e de Kalaf em particular, entre a juventude portuguesa é imensa, explicando, em parte, um fenômeno curioso: a adoção de termos do português de Angola por parte dessa juventude. Ou seja: em Portugal passou a ser cool falar como um angolano.

Uma novela portuguesa, “A única mulher”, recentemente estreada num canal de grande audiência, a TVI, testemunha também a reviravolta histórica a que me refiro. Uma parte importante do elenco é constituído por atores africanos e afrodescendentes. Porém, ao contrário do que acontece com a maioria das novelas brasileiras, em “A única mulher” os ricos são os negros. Os personagens brancos anseiam por se aproximar do mundo de luxo e ostentação em que vivem os angolanos.

As marcas de roupa mais exclusivas, ao longo da majestosa Avenida da Liberdade, passaram a exibir modelos com padrões de inspiração africana — ou padrões que os designers europeus imaginam ser “africanos” — numa tentativa de atrair um segmento de mercado cada vez mais importante. Enraizou-se a ideia de que todos os angolanos são ricos. Numa das suas crônicas mais divertidas, Kalaf conta que, certa noite, tendo terminado de jantar num restaurante lisboeta, veio ter com ele o respectivo proprietário. “O senhor é angolano?” — Perguntou. Kalaf confirmou, e logo o homem, apurando os modos, quis saber se o meu amigo estaria interessado em adquirir o restaurante. Kalaf pensou em contar-lhe a verdade, que não tinha dinheiro para tal, mas o orgulho angolano falou mais alto. Pediu detalhes, e ficou de pensar no assunto. Nunca mais voltou ao restaurante.

O investimento angolano em Portugal tem chamado a atenção da imprensa internacional, que fala em “vingança do colonizado”. A verdade é que não se trata de vingança, não se trata sequer de colonizar o colonizador, trata-se tão somente de interesse e afinidade. Os ricos angolanos colocam dinheiro em Portugal porque conhecem o país e se sentem tão à vontade em Lisboa quanto em Luanda. Mais interessante, porém, do que a conquista econômica são as trocas culturais. Estamos criando algo a que podemos chamar lusofonia horizontal: um espaço de língua portuguesa em que todas as partes participam de forma livre, em situação de igualdade, sem dominados nem dominadores.


JOSÉ EDUARDO AGUALUSA/O Globo

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