terça-feira, 2 de junho de 2015

Zero Hora, vamos falar de racismo?

O que leva um veículo de imprensa a divulgar a opinião preconceituosa e ofensiva de um de seus leitores? Seria liberdade de expressão ou discurso de ódio?
 
Reprodução / Facebook Cristiano Goldschimidt

Fiquei extremamente chocada com um comentário publicado na edição deste domingo 31 de maio do jornal Zero Hora, veículo do Rio Grande do Sul. Nele, o leitor é claramente racista e desinformado.

O comentário em si não me choca, como mulher negra já ouvi e li muitas coisas horríveis; o que me choca é o fato de o jornal ter publicado algo explicitamente racista. Até que ponto o jornal vai se esconder sob o argumento da liberdade de expressão? É sabido que racismo é crime, certo? Logo, publicar algo racista é igualmente crime, ou não? O comentário em questão foi publicado na versão impressa, logo foi lido antes e selecionado, diferentemente de quando se é num portal de internet, o que torna o fato ainda mais grave.

No comentário, um senhor diz que é sabido que pessoas negras têm propensão natural ao crime e são menos qualificadas e é justamente por isso que lotam os presídios no Brasil. Essa inferioridade natural atribuída à população negra foi utilizada na história como forma de opressão.

Os estudos de evolução biológica do século XIX que aplicaram o conceito de racismo biológico marcando a relação de superioridade e inferioridade entre colonizadores e conquistados, mais precisamente na América, legitimaram as relações de dominação européia, ao atribuir aos negros uma “inferioridade natural” devido à cor e tamanho do cérebro. Autores como James Watson, Nina Rodrigues se utilizaram desse racismo biológico em suas pesquisas, e hoje ele é considerado algo totalmente deslegitimado e arcaico.

O comentário desse senhor mostra que ele ignora as construções do racismo em nossa sociedade. Foram 354 anos de escravidão e, depois, no pós abolição, não se criaram mecanismos de inclusão para a população negra, como foram criados para os imigrantes que vieram para cá no processo de industrialização. Esses também vieram, como diz o senhor, “sem nenhuma formação”, mas receberam oportunidades de trabalho, terras para iniciarem suas vidas por aqui.

Se hoje usufruem de uma realidade diferente da dos negros foi porque receberam auxílios deste País para isso, o que não ocorreu com a população negra, que veio para cá como escrava e em condição muito mais desumana, portanto. O poder sempre se esforçou para esconder a origem social das desigualdades, como se as disparidades fossem naturais, meritocráticas ou providencialmente fixadas. O que faz, por exemplo, que esse senhor não perceba ou não queira perceber que os direitos negados e a situação de pobreza da maioria da população negra são decorrência de uma estrutura social herdeira do escravismo.

Porém, o mais chocante aqui é um veículo de imprensa divulgar essa opinião racista, e, por conseguinte, ofensiva. Qual o limite da liberdade de expressão ou seria isso discurso de ódio? Como diz a filósofa estadunidense Judith Butler, em Excitable Speech: “A linguagem opressora do discurso de ódio não é mera representação de uma ideia odiosa; Ela é em si mesma uma conduta violenta, que visa submeter o outro, desconstruindo sua própria condição de sujeito, arrancando-o do seu contexto e colocando-o em outro onde paira a ameaça de uma violência real a ser cometida - uma verdadeira ameaça, por certo”.
 


por Djamila Ribeiro - Carta Capital

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