Com mesmo presidente há 36 anos, Angola precisa de apoio para democracia
Na noite de 11 de Novembro de 1975, um médico de 52 anos, Agostinho Neto, proclamava em Luanda a independência de Angola. Enquanto Neto discursava ouvia-se ao longe o ribombar dos morteiros. Balas tracejantes riscavam a noite. A guerra espalhara-se por todo o país. As tropas regulares sul-africanas avançavam a partir do sul em direção à capital. O exército zairense, ao serviço do ditador Mobutu Sese Seko, entrara pelo norte, juntando-se aos guerrilheiros da Frente de Libertação Nacional de Angola, FNLA, um dos três movimentos que haviam combatido o colonialismo português, e estava mesmo às portas de Luanda. A FNLA contava ainda com o apoio de mercenários portugueses, ingleses e americanos. O MPLA, de Agostinho Neto, era apoiado pela União Soviética e por Cuba.
Pode parecer estranho que o primeiro país do mundo a reconhecer a independência de Angola, proclamada em Luanda por um movimento de inspiração marxista, tivesse sido o Brasil da ditadura militar. Olhando para trás, a quarenta anos de distância, é forçoso concluir que foi uma decisão inspirada.
O Brasil é, em larga medida, filho de Angola. O contrário também é verdade. Os dois países construíram-se em paralelo, ligados por uma terrível iniquidade, o tráfico de escravos, mas também por séculos de trocas felizes. Ao reconhecer a independência de Angola, os generais brasileiros demonstraram uma impressionante clarividência. Em primeiro lugar, apostaram no movimento que haveria de vencer a guerra. Em segundo lugar, apoiaram um partido que, embora ideologicamente afastado dos seus próprios ideais, estava muito próximo do Brasil no plano da cultura e dos afetos. O MPLA representava então, e ainda representa, uma certa Angola urbana, de língua materna portuguesa, culturalmente mestiça, que se reconhece no Brasil como quem se vê ao espelho.
Nos anos que se seguiram à independência foram muitos os artistas e intelectuais brasileiros que se deslocaram a Angola para apoiar a construção de um país socialmente mais justo. A História, infelizmente, não lhes deu razão. O mesmo movimento que proclamou a independência, em nome de ideais socialistas, juntou-se ao capitalismo global, aviltou-se e degradou-se. O presidente José Eduardo dos Santos, no poder há 36 anos, usa o aparelho de Estado para proveito próprio e da família. A filha, Isabel dos Santos, é considerada a mulher mais rica da África. Enquanto isso, a esmagadora maioria dos angolanos vive na pobreza.
A queda brusca do preço do petróleo deixou o regime angolano à beira de um ataque de nervos. Muitas empresas estrangeiras começaram a abandonar o país. Artigos recentes dão conta das dificuldades por que passa a empresa petrolífera estatal Sonangol, que se encontra, segundo alguns analistas, em situação de falência técnica. Esta situação é especialmente crítica num país que depende quase inteiramente do petróleo.
A presente crise ameaça aprofundar ainda mais o já vertiginoso abismo entre ricos e pobres. Contudo, ao invés de se tentar aproximar das diferentes forças políticas e sociais, abrindo caminho a um diálogo democrático, e apaziguando as tensões, o regime optou pela repressão. Há um mês deteve 18 jovens, reunidos a ler e a discutir um livro sobre desobediência pacífica, acusando-os de envolvimento numa tentativa de golpe de Estado. Alguns dos jovens já tinham sido presos anteriormente por tentarem manifestar-se nas ruas a favor da democracia e da justiça social. O rosto mais conhecido é o de um músico, Luaty Beirão, que se tornou uma figura muito popular quando, há quatro anos, no início da Primavera Árabe, interrompeu um concerto para apelar, em termos não muito respeitosos, ao afastamento de José Eduardo dos Santos. Luaty foi preso várias vezes depois disso. Chegou mesmo a ser brutalmente agredido e torturado.
O Brasil não pode ignorar o que se passa em Angola. Seria importante, neste momento, escutar a voz daqueles artistas generosos e solidários que visitaram Luanda nos anos 70 e 80, em momentos difíceis, e que ainda hoje são idolatrados no país, como Chico Buarque, Djavan ou Martinho da Vila.
O Brasil foi, como expliquei no início desta coluna, o primeiro país a reconhecer a independência de Angola e isso é algo que muitos angolanos valorizam. Ao apoiar a democratização e a completa pacificação de Angola, o Brasil estaria apostando, mais uma vez, não numa relação política de circunstância — como são sempre as relações entre governos —, e sim numa relação a longo prazo entre povos irmãos. Não quero acreditar que a democracia brasileira possa ser menos inteligente, ou politicamente mais cínica, do que foi a ditadura.
Fonte: O Globo
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