quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Campanha #PrimeiroAssédio expõe tabu de violência sexual contra meninos


Rafael estava brincando no fliperama com um primo quando sentiu um homem estranho se aproximar demais. O menino ficou incomodado – o desconhecido estava com o pênis ereto e o esfregou nele. Rafael empurrou o primo para o lado e saiu – tinha 10 anos.

Marcelo* costumava ficar sob supervisão da vizinha quando a mãe não tinha com quem deixá-lo. Ele tinha 11 anos, mas ela insistia em lhe dar banhos que duravam mais do que o normal. O menino achava esquisito.

João Vitor* sempre brincava de “lutinha” com o pai. Depois de um tempo, porém, começou a perceber que a brincadeira tinha alguns toques por baixo do shorts que ele não gostava.

Depois de muito tempo sendo abusado e ameaçado pelo vizinho da família, Daniel* teve problemas de saúde e precisou recorrer à mãe. Ele foi para o hospital e, aos 12 anos, se descobriu com uma DST (doença sexualmente transmissível).

A BBC Brasil decidiu abordar o tema do assédio e violência sexual contra meninos após pedido de leitores em mídias sociais. “Vamos falar também das vítimas masculinas?”, pediu um internauta no Facebook em discussões sobre a repercussão da campanha criada sob a hastag #primeiroassedio.

Em meio aos milhares de depoimentos de mulheres, em número bem menor, homens também revelaram episódios de assédio e violência sofridos no passado como os reunidos pela reportagem da BBC Brasil. Em outros casos, mulheres revelaram a violência sofrida por homens próximos. “Namorei um cara que tinha sido abusado sexualmente quando criança e vi o quanto isso tinha transformado ele”, disse.

Proporção semelhante se encontra nos dados oficiais, que mostram um número bem inferior de vítimas masculinas. Mas essa é apenas uma das razões pelas quais o tema ganha menos espaço.
Cultura machista

Segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil, há uma tendência a se subestimar o problema da violência sexual contra meninos pelo fato de o tema ser visto como um grande tabu na sociedade.


“É algo que precisa realmente ser mais investigado. Nas pesquisas sobre o abuso sexual de meninos, eles notam que esses casos são mais subnotificados ainda do que o de meninas”, disse à BBC Brasil Flávio Debique, gerente técnico de proteção infantil da ONG Plan International Brasil, que lida com direitos das crianças.

“Essa dificuldade de falar sobre esse tema tem a ver com nossa cultura machista e patriarcal de considerar que isso para os meninos significaria a ‘perda’ de sua condição de homem.”

Um estudo feito nos Estados Unidos revelou recentemente que um em cada seis homens sofreu algum tipo de abuso antes dos 16 anos no país. No Brasil, há poucos dados sobre o assunto; mas o Disque Denúncia (o Disque 100, serviço nacional de denúncia de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes) registrou em 2014 uma média diária de 13 denúncias de abusos de meninos.

O número ainda representa menos de 30% dos casos com meninas, mas de acordo com especialistas, também é alarmante.

“O número de meninos abusados é bastante subnotificado, e isso se deve à nossa cultura. O caso de meninos assediados não vem à tona por conta do constrangimento em assumir que eles passaram por isso”, disse à BBC Irene Pires Antonio, psicóloga judiciária da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Desde 2012, Irene atende meninos e meninas que passaram por experiências de abuso sexual. “Tanto os meninos quanto as meninas têm bastante dificuldade de falar sobre isso. Mas os meninos chegam aqui muito mais constrangidos, apreensivos. Vivemos em uma cultura que ‘homem não chora’ e ‘sabe se defender sozinho’. Admitir uma fraqueza é difícil.”
Denúncias

Em 2014, foram 22.450 denúncias feitas de abuso sexual de crianças e adolescentes – uma média de 61,5 por dia. Dessas, 17.630 fora abusos envolvendo meninas e 4.820 envolvendo meninos.

Fazer a denúncia já é, segundo especialistas, uma experiência traumática para crianças de ambos os sexos. Mas no caso dos meninos, o processo é ainda mais complexo. Enquanto meninas que sofrem crimes sexuais recorrem à Delegacia da Mulher (delegacia especializada para tratar casos de violência contra a mulher), os meninos precisam ir a delegacias comuns para relatar os casos de abuso.


“O mesmo delegado que está ali ouvindo o caso de roubo, de assassinato, é o que vai ouvir o caso de abuso do menino”, explicou Irene.

Em algumas cidades, existem Ambulatórios de Atendimento para Violência Sexual Contra a Mulher, mas quando a vítima é um menino, não há local específico para que ele possa fazer esse atendimento.

“Não existe Ambulatório de Violência Sexual, existe um Ambulatório de Violência Sexual contra a Mulher. Lá, são apenas ginecologistas atendendo. São macas ginecológicas. O lugar não é preparado para receber meninos. Ele vai entrar em um ambiente exclusivamente feminino”, disse Irene.

“É muito possível que os meninos tenham mais dificuldade pra enfrentar isso porque a própria sociedade não está pronta para receber os casos.”

Alguns Estados implementaram um esquema para reduzir o constrangimento da criança ao denunciar uma situação de abuso ou violência sexual.

Antes disso, o procedimento padrão no tratamento de casos de abuso infantil previa que a criança ou adolescente tivesse de repetir várias vezes sua história, passando pelo delegado, IML (Instituto Médico Legal, onde se faz o exame de corpo de delito para detectar as provas do abuso), juiz, etc.

Mas o “Depoimento Especial” mudou isso, segundo Irene. “Antes, a criança tinha que falar sobre o abuso na frente do juiz, sozinha. Hoje, nesse método, ela precisa contar o que sofreu apenas 2 vezes e o depoimento é feito para a psicóloga, com o juiz assistindo fora da sala. O que melhorou bastante, porque antes era um constrangimento muito grande”, diz ela.

“Nós fazemos um atendimento psicológico com essa criança e com a família dela, procuramos descobrir de onde veio o abuso, qual é a situação atual e tratar esse problema.”
Preconceito

Na raiz da dificuldade de um menino para relatar casos em que sofreram assédio ou abuso está o temor do preconceito que pode surgir quanto a sua orientação sexual, segundo os especialistas.

“A ‘pior’ condenação que um menino pode ter na sociedade machista em que vivemos é ser gay”, explica Flávio Debique. “Aqui o homem precisa ser macho. Então se ele for abusado por uma mulher e reclamar disso, será ‘tachado’ de gay, e se for abusado por um homem e denunciar, também pode ser considerado gay.”


“Se a mulher aborda um homem, ainda que ele seja criança ou adolescente, espera-se que ele esteja pronto para isso.”

Para Debique, a “cultura machista é a grande vilã” na maior parte dos casos de assédio ou abuso sexual de crianças, porque é ela que estabelece o “poder” do homem com relação à mulher e que determina que o homem não pode assumir a condição de vítima, ele precisa ser “durão”.

A psicóloga do Tribunal de Justiça de São Paulo, no entanto, destaca um outro elemento na questão também cercado por um tabu: o papel muitas vezes ativo de mulheres como autoras da violência.

“Os cuidados maternais podem encobrir muita coisa, por exemplo. A mulher fica com o papel de dar banho, de levar ao banheiro. E às vezes o abuso acontece aí, seja pela mãe ou por uma conhecida que está tomando conta da criança”, disse Irene, acrescentando, no entanto, que o número de casos é muito pequeno: 0,4% do total de casos que chegaram ao tribunal.

Segundo Debique, uma das soluções para a questão seria a de dar mais peso ao ensino de igualdade de gênero. “Tudo começa na forma como a gente assume o que é ser homem e o que é ser mulher, a desvantagem que as meninas têm, e as aparentes vantagens que os homens têm. As desigualdades de gênero afetam as pessoas de maneira diferente, mas todos saem perdendo.”

Irene aponta também a importância de falar mais sobre o abuso sexual de meninos e meninas. Campanhas de prevenção e conscientização ajudam a chamar a atenção para o caso. “Toda vez que começa uma campanha ou que sai uma matéria sobre isso no jornal, aumenta muito o número de denúncias. Isso prova a importância de falar sobre o tema e acabar com o tabu”, concluiu.

*Os nomes são fictícios.


Por Renata Mendonça Do BBC

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