“Herói é aquele que inspira, que abre um novo baú. Por exemplo, gosto muito do menino Kirikou.” É o que diz uma das rimas do novo livro de Lázaro Ramos, que se refere ao menino africano e pequenino do filme “Kiriku e a Feiticeira” (“Kirikou et la Sorcière”), de 1998.
O trecho dá uma dica do que pensa o ator global. “Muitas vezes faltam referências de heróis negros. Esse rosto diverso é fundamental para a infância, não só para a criança negra, mas para toda e qualquer criança.”
O livro que o artista lançou no último sábado (7), “Caderno de Rimas do João” –ilustrado com personagens negros e com menções a Gilberto Gil e à capoeira– segue essa lógica.
Para o autor e ator, o número de livros infantis com essa preocupação está crescendo: “Um pai que esteja atento, que queira que seu filho conviva com a diversidade, hoje consegue achar um bom catálogo na internet”.
A nova obra de Lázaro Ramos é um “minidicionário” que explica palavras como “Amizade”, “Candidato” e “Sonegar” para as crianças, usando rimas e trocadilhos. Foi inspirado em perguntas que João, seu filho de quatro anos, fazia. “Era brincadeira de pai e filho”, diz Lázaro, que também tem uma filha de nove meses de idade.
Esse é o terceiro livro que o ator escreve para crianças. O primeiro deles, “Paparutas”, fez quando tinha 21 anos. O segundo, “A Velha Sentada”, lançou em 2010. Ambos viraram peças de teatro dirigidas por ele.
No camarim do espetáculo “O Topo da Montanha”, que apresenta em São Paulo aos finais de semana, o autor falou sobre o novo livro, sua infância e a relação com os filhos.
Folhinha – Como surgiu a ideia desse novo livro?
Lázaro Ramos – Depois que lancei “A Velha Sentada”, escrevi um monte de coisa, mas nenhuma ideia ia para frente. Tendo filho, você começa a brincar de várias coisas, e a própria criança vai te induzindo. Tinha uma brincadeira que eu fazia com o João. Quando ele me perguntava alguma coisa, eu começava a fazer rimas para explicar, porque não tem jeito, tem significado que não dá para explicar para a criança.
Então eu pensei: vou fazer um “dicionariozinho” com alguns verbetes –alguns de uma maneira engraçada, outros de maneira poética ou lúdica. Aí fui deixando a criatividade falar. Eu queria também falar sobre o tema amizade, que é o que costura os poemas, porque eu estava observando muito o meu filho na maneira como ele formava amizades: às vezes brigava, e daqui a pouco já fazia as pazes.
As ilustrações do livro têm muitas referências à cultura negra. Foi algo que você combinou com o ilustrador?
Não, eu dei o livro para o Mauricio [Negro] sem falar nada. Não vi quase nada antes de ficar pronto. E achei que ficou muito legal, o que tem de cultura negra vem de maneira bem natural.
Acha que faltam livros infantis com protagonistas negros ou que mostrem a cultura africana?
Nem todas as livrarias têm a preocupação de colocar esses livros em suas prateleiras, mas um pai que esteja atento, que queira que seu filho conviva com a diversidade, consegue encontrar um bom catálogo. Muito do que eu faço é procurar as editoras na internet e às vezes mandar entregar em casa. Temos ótimos autores que estão contando novas histórias. Tem uma coleção por exemplo, da editora Mazza, que são os contos infantis contados da mesma maneira, só que em todas as ilustrações os meninos são negros. É isso, a lição de moral está lá e a estética é outra, o que é bacana para os nossos filhos.
Você tem essa preocupação com o seu filho?
Tenho sim, e vejo que faz toda a diferença. Ele lê pelo menos um livro por dia, e quando se vê representado ou quando vê a diversidade, ele se sente incluído no mundo, com a possibilidade de ser herói também. Porque muitas vezes o que falta são essas referências. E esse rosto diverso é fundamental para a infância, não só para uma criança negra, mas para toda e qualquer criança. Porque o mundo é essa diversidade, e aprender a ver isso na infância já é meio caminho andado para ser um adulto legal. E isso em todos os tipos de diversidade, não só étnica.
Qual foi a reação do João quando viu o livro?
Está todo metido, né! Fala para todo mundo: “Sabia que meu pai fez um livro para mim?”. O livro dele já está todo amassado, aí o pessoal vai em casa e ele pega, mostra. Ele não sabe fazer a rima ainda, isso é o mais engraçado, porque ele tenta ler e faz a rima dele [risos]. Mas ainda não levou para a escola, porque estou pensando em dar de surpresa para todos os colegas no aniversário dele.
Você já tinha escrito dois livros para crianças. O que acha que mudou entre um trabalho e outro?
Os dois primeiros livros me ensinaram coisas. Acho que o primeiro era muito “verdinho”, escrevi com 21 anos de idade. Tem uma inocência ali, era só um pós-adolescente tentando dar uma explicação para uma memória afetiva de infância, não tem uma linguagem. Já a “Velha Sentada” tem uma pesquisa.
Enquanto escrevia, tive muita certeza de que a minha maneira de escrever para criança não é pensando que estou escrevendo para criança. Todas as vezes que eu pensava: “Esse capítulo eu vou escrever porque as crianças de quatro anos…”, só saía porcaria. Não saía, porque eu ficava ali tentando imaginar o que uma criança ia desejar ou gostar de ler. Eu vou escrever uma história e, se for para criança, será. Mas, se não for, não será.
Você se envolveu em vários projetos relacionados a crianças. Os livros, as peças, a Unicef. De onde surgiu esse interesse pela infância?
[Silêncio]. Eu acho que desde sempre gostei disso. Desde sempre gastei muito tempo com criança e idoso. Eu pequeno ficava do lado do velhinhos perguntando, estimulando. Mesmo quando era adolescente, que é uma época em que você meio que rejeita as crianças, eu adorava levar papo. Eu adoro cabeça de criança, a sinceridade da criança e como ela te põe contra a parede. Isso me deixa estimulado. Vez por outra também faço personagens que têm comportamento de criança, que são brincalhões, lúdicos, inventivos, e as crianças se identificam muito com isso. A cabeça da criança uma coisa sensacional.
A Unicef já é uma questão política, porque eu tenho uma grande preocupação em como a infância está sendo tratada. Eu poderia ficar aqui desfilando dados para você. Mas eu acho que, se eu tenho o microfone na mão, eu tenho que falar em prol de uma causa que faça diferença, e acho que falar em nome das crianças é muito importante.
E a sua infância, como foi?
Foi o máximo. Meu pai e minha mãe trabalhavam muito, mas tenho uma tia-avó –a primeira da família a sair do interior da Bahia e ter uma vida um pouco melhor– que tinha uma casa em Salvador para onde ela acabou levando todas as crianças para estudar. Nessa casa tinha quintal, e para mim isso fez toda a diferença na minha infância. Foi pisando com o pé no chão de terra, subindo em árvore, brincando com os primos de correr de lá para cá, muitas brincadeiras artesanais. Nunca tive o Atari, o brinquedo mais caro da época, mas eu tinha ali um universo em que eu podia criar o que quisesse. Brincar de castelo, brincar de floresta no quintal da minha tia, essa é a memória de infância que eu mais tenho.
Você costumava ler ou ouvir histórias?
Não, eu comecei a ler quando comecei a fazer teatro, com 15 anos de idade. Eu lia aqueles livros indicados pela escola, mas fui aprender a ter o gosto pela leitura com 15 anos, já tarde. Meu tio contava histórias. Ele foi um dos fundadores dos Filhos de Gandhy, bloco de Carnaval lá de Salvador, então não contava histórias infantis, mas de família, de como foi fundar o bloco, de como era trabalhar como estivador. Ele adorava. E eu ficava imaginando tudo o que ele dizia.
Você ainda é um pouco criança?
Eu sou bem bobinho. Meu filho fala “Papai você é tão engraçado”, porque eu acho que é o que deixa meu dia a dia leve. Eu tenho uma rotina bem pesada, minha vida de adulto é bem de adulto mesmo. Se eu não fugir um pouco para esse universo lúdico, brincalhão, deitar no chão com os meus filhos, esquecer de outros assuntos para me permitir isso, acho que eu seria uma pessoa muito sofrida.
Você disse que escreveu várias coisas, mas nenhuma deu certo. Que tipo de coisas?
Estou com mais dois livros infantis prontos que fiz depois desse. Não sei quando nem por qual editora vou lançar. O outro é sobre a conquista da independência, seja de aprender a comer sozinho ou ter coragem para fazer alguma coisa. O outro acho que não é infantil. Está terminado, mas estou achando que é um livro para mulheres de 30 anos. Quando eu escrevo eu nunca sei o que vai virar. O meu primeiro livro eu não sabia que era infantil. Quando eu terminei, pensei: “Ih, isso dá para criança.”
Pretende escrever mais?
Eu vou escrevendo, não acho que essa vida de autor vai ser uma coisa planejada. Acho que eu tenho que escrever, se eu tiver alguma coisa útil para falar. Se eu não tiver, eu não vou falar.
CADERNO DE RIMAS DO JOÃO
AUTOR Lázaro Ramos
EDITORA Pallas
PREÇO R$ 35
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