quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Especialista diz que questões quilombolas causam polêmica

Cíntia Beatriz Müller é advogada, antropóloga e doutora em Antropologia Social. Em evento sobre as questões quilombolas, na última semana, em São Paulo (SP), a professora abordou principalmente a ação direta de inconstitucionalidade (Adi) proposta pelo Democratas (DEM) contra o Decreto 4887/2003, considerado um marco importante de proteção das comunidades quilombolas.

Em entrevista à Assessoria de Comunicação Social da UFGD, Cíntia fala que discutir terra no Brasil, seja para o índio, quilombola ou povos tradicionais, é tocar num assunto polêmico, porque a dimensão do significado da terra é muito caro para a elite e para uma parte importante da estrutura social brasileira, o que não deixa de ser um embate ideológico, frente ao discurso desenvolvimentista.

Leia a entrevista na íntegra.

Como foi sua chegada nessa questão quilombola e em Dourados, na UFGD?

Trabalhei com pesquisas relacionadas à questão quilombola desde 2001, época em que atuei no Rio Grande do Sul. Em 2005, integrei a equipe de uma fundação de pesquisa da Suíça em seu escritório das Américas como pesquisadora, onde mantive contato de com a questão da titulação dos territórios quilombolas no país. Desde 2008, estou em Dourados, sou professora de Antropologia do curso de Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências Humanas da UFGD e aqui fui convidada a integrar a equipe de pesquisa para elaboração de relatórios de identificação e delimitação de áreas quilombolas em Mato Grosso do Sul, que serão feitos através de convênio celebrado entre o INCRA e a UFGD.

Quantas são essas áreas no Estado e em Dourados?

No Mato Grosso do Sul já foram identificadas mais de 10 comunidades rurais e urbanas. Em Dourados, em princípio, existe a comunidade de Picadinha que já teve o seu relatório antropológico escrito por um antropólogo formado pela UnB e que já estava pronto quando cheguei em Dourados, em julho de 2008. O que existe hoje em relação à Picadinha são trâmites burocráticos internos do INCRA, porque quem procede a demarcação dos territórios quilombolas são os técnicos do órgão federal e não os pesquisadores que elaboram os estudos de delimitação da área.

Mas quem identifica as áreas quilombolas?

Existe um procedimento administrativo conduzido pelo INCRA e o pesquisador, antropólogo, historiador, geógrafo, é chamado a colaborar no levantamento de dados sobre essa comunidade. O grupo mesmo se auto-identifica, baseada na Convenção 169 da OIT, que é um ordenamento jurídico que se encontra perfeitamente integralizado no ordenamento jurídico brasileiro. Portanto, a comunidade se auto-identifica frente à Fundação Cultural Palmares vinculada ao Ministério da Cultura. A Fundação expede um certificado de reconhecimento e o que acontece depois é a abertura de um procedimento de titulação da área quilombola.

Qual o papel do pesquisador então nesse reconhecimento, especificamente?

Ele elabora um estudo, o "Relatório antropológico de caracterização histórica, econômica, ambiental e sócio-cultural da área quilombola identificada" parte do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação. A identidade do grupo não é questionada, o pesquisador é chamado para identificar a área que esse grupo pleiteia, por isso a importância do estudo em auxiliar todos os envolvidos, comunidade e sociedade civil, na compreensão do significado daquela área e os marcos de territorialidade acionados pelo grupo para reivindicarem aquele território.

E isso pode ser contestado?

Pode ser contestado conforme a instrução normativa 49 de 2008. As pessoas que se sentirem afetadas pelo processo de reconhecimento têm direito a contestar o relatório há também instâncias recursais administrativas previstas na IN 49/2008. Os setores que se opõem a esse tipo de demarcação ou de delimitação desconhecem a própria lei. No caso de Mato Grosso do Sul, principalmente a região sul, como existe uma efervescência da discussão sobre a questão indígena, as pessoas co-relacionam os quilombos contemporâneos com a questão indígena.

O que é diferente?

No procedimento de titulação de terras quilombolas há previsão de indenização, por exemplo, é outra história e outro procedimento.

Porque reconhecer quilombos?

Existe uma falsa leitura de que o Brasil vive uma democracia racial. O brasileiro pratica discriminação dentro de uma das formas mais perversas que existe dizendo que ela não existe. Se você pegar os dados do IBGE, uma fonte estatística que dita parâmetros de políticas públicas, inclusive para definição de critérios de financiamento agrário, e verificar por classificação de raça e cor qual é o salário dessas pessoas e o grau médio de ensino, veremos que essa nossa democracia racial é aparente onde as cores têm o seu lugar na hierarquia social de nosso dia-a-dia. Até 2004, as comunidades quilombolas eram eminentimente rurais e uma característica dos quilombos urbanos é uma apropriação diferenciada do solo, com preservação mais seletiva da natureza.

Quando se faz esse tipo de política, não há mais discriminação?

Não, você dá visibilidade a uma discriminação que já existe. A luta pelo reconhecimento é pautada na busca da regularização das terras onde os quilombolas já vivem a gerações. Você tem grupos de famílias majoritariamente negras vivendo em áreas do interior de municípios, ou em áreas urbanas, e em constante risco de perdas de suas terras. Muitas vezes elas se vêem obrigadas a buscar o reconhecimento porque se vêem espremidas em seu território. Ou elas acessam um modo diferenciado de regularização de suas terras ou vão sofrer um processo de desapropriação tão grande que serão despejadas de sua moradia, de seus territórios.

Que tipo de outro benefício é legítimo sem ser o da terra?

Existe a bolsa família para essas comunidades, programas do governo relacionados ao Brasil Quilombola, de saúde que às vezes é criticado porque é como se as técnicas indígenas fossem transpostas para os quilombolas, e os problemas são diferentes. Em um grupo afro, por exemplo, aparecem muitas doenças relacionadas à pressão alta, problemas de melanoma e a anemia falciforme que, neste caso, também se agrava devido ao baixo poder aquisitivo dessa população e seu acesso restrito aos serviços de saúde.

Como está Dourados e MS nesse processo de reconhecimento comparado com outros estados do país?

O Mato Grosso do Sul está iniciando sua participação neste processo e tem duas áreas tituladas Corguinho e Furnas do Dionísio. Tem mais de 10 procedimentos administrativos abertos, o INCRA/Campo Grande é quem tem esses números mais precisos. O que se vê é um estado que está tomando contato agora com essa discussão. Na própria universidade, nos setores políticos e para a população em geral esse tema é desconhecido, diferente do Maranhão, que tem um contingente de população negra maior, pois teve plantéis de ex-escravos numerosos que foram abandonados em fazendas produtoras de algodão antes do final da escravidão, e no Rio Grande do Sul, que se quer um estado europeu, mas que já possui 125 comunidades quilombolas identificadas e 42 procedimentos abertos no INCRA.

Comunidades reconhecidas e não tituladas, é isso?

O procedimento de titulação é bastante burocrático e, ao contrário do que alguns setores da sociedade dizem, que o governo vai "dar terra para os quilombolas", a gente explica que o caminho é muito longo. O governo não vai apenas titular a terra, existe dinheiro para pagar as indenizações. Outra questão é a política agrária que faz parte da estrutura da história do Brasil. Você tem vários períodos da história nacional e, ao longo deles, percebemos que a estrutura agrária sempre foi base de uma elite econômica, numa política que se mantém e que se valoriza. Então, quando se discute terra no Brasil, seja para índio, quilombola e povos tradicionais, você toca num assunto muito polêmico. A dimensão do significado da terra é muito caro para a elite e para uma parte da estrutura da sociedade brasileira. E isso não deixa de ser um embate ideológico no sentido do discurso desenvolvimentista.

Qual é esse discurso?

Ele diz que a terra na mão de um grande agricultor vai gerar muito mais desenvolvimento para o país do que na mão de 35 famílias quilombolas, porque a forma como o grupo se relaciona com a terra é muito diferente. E aí você tem essa ideia do desenvolvimentismo sendo assimilada e aceita de forma até ingênua. Porque junto com o desenvolvimentismo você tem alterações de recursos hídricos, composição do solo, contaminação do lençol freático por uso de agrotóxico, controle genético de produção, enfim, às vezes esse discurso surge de forma ingênua.

E qual o papel da universidade nesse ponto?

Entra como produtora de conhecimento crítico, nem tanto ao céu nem tanto à terra, com ponderação. Da mesma forma quando nós produzimos os estudos, nós também avaliamos de forma crítica os dados que nos são apresentados pelas próprias comunidades quilombolas. Nós vamos atrás de registros documentais, fontes jornalísticas de determinados períodos, enfim, da mesma forma que a universidade tem esse espírito crítico com a elaboração da feitura de suas pesquisas, ela também tem que ser crítica do período histórico em que ela vive, e isso é co-relacionado, ou seja, a seriedade da minha crítica para a sociedade, de uma forma ampla, vai depender da seriedade da minha crítica frente a coleta dos meus dados. Nós não podemos correr o risco de prejudicar as comunidades e a sociedade e abrir o flanco da desconfiança sobre a produção de pesquisas na universidade, não é assim nem na concepção da instituição, nem é positivo para as comunidades e muito menos para as pessoas que podem vir a ser desapropriadas e indenizadas.

Existe uma Adi contra o decreto 4887/2003, o que é essa ação?

Você tem um questionamento do DEM sobre o auto-reconhecimento, quando isso não foi instituído pelo decreto e sim pela convenção internacional 169/OIT de 1989 internacionalizada em 2002. Então, quando o decreto vem e diz que o que vale o auto-reconhecimento está se alinhando com todo um ordenamento jurídico internacional, comunidade da qual o Brasil faz parte. O outro questionamento da Adi é de que, no sentido formal, o direito à propriedade reivindicado pelas comunidades quilombolas é garantido no artigo 68 do ato das disposições constitucionais transitórias da Constituição Federal de 1988, em termos formais, o ex PFL critica a regulamentação deste artigo via decreto. Só que o artigo 68 do ADCT/CF/88 é auto-aplicável, o decreto vem refinar a legislação referente ao processo administrativo e estabelece algumas competências e conceitos em relação ao INCRA e expectativas de atribuições à Fundação Cultural Palmares, por exemplo. O Ministério Público Federal atuou de forma contundente, no período anterior ao decreto, e os pesquisadores contribuíram com suas pesquisas no âmbito dos Inquéritos Civis do MPF e de Ações Civis Públicas movimentadas pelas associações e comunidades que buscavam sua titulação com base no art. 68 do ADCT/CF/88.

Qual o encaminhando agora?

O DEM apresentou essa Adi e verificam-se períodos em que organizações juntaram Amicus Curae em defesa da constitucionalidade do decreto e ora contra. A ação está por ser julgada e o temor é que existem muitos procedimentos em andamento e que já têm seus cinco anos de atividade burocrática mesmo, e como ficará esta situação se o decreto cair? Vai existir a nulidade desses procedimentos? Paralisa um processo que já é lento. Então, entidades, como o MPF organizaram em São Paulo um evento para dar visibilidade à discussão. Foi um evento limitado, onde estivaram presentes dentre estudantes e pesquisadores representante da Aracruz Celulose e alguns militares, por exemplo, e, para nós, é bastante interessante discutir com essas pessoas a questão, porque existem pontos de incompreensão sobre o que significa a busca deste reconhecimento. O meu papel foi justamente dizer que o decreto, embora seja técnico em termos jurídicos, tem uma dimensão para além desse procedimento burocrático. Tendo em vista a existência desse procedimento, as comunidades acabam investindo nesse tipo de processo também para formular documentos sobre a sua história que pode ser aplicada no ensino, por exemplo, ou seja, existem outros níveis de apropriação das pesquisas com as comunidades quilombolas. O IPHAN tem investido em pesquisas sobre patrimônio material e imaterial das comunidades quilombolas, e daí você tem uma repercussão desse pleito por terra em outras áreas do conhecimento.

E como a UFGD se posiciona nisso tudo?

A universidade está acompanhando a Adi, porém não participa desse processo. Nesse momento, ela tem papel de contribuir com a discussão sobre a questão quilombola em Mato Grosso do Sul através da produção de conhecimento crítico. Existem, pelo menos, três projetos de pesquisa dialogando com a população quilombola em andamento na universidade neste momento.

E, para finalizar, qual a diferença da questão indígena para as comunidades quilombolas?

Primeiro você pesquisa com povos que se relacionam de forma diferenciada com a estrutura da sociedade brasileira. Quando você pensa num grupo indígena, no imaginário popular você pensa numa pessoa que mora distante do meio urbano, por exemplo. E, quando você pensa a comunidade quilombola e descobre que são afro-descendentes, você já os integra na sociedade de forma diferenciada. Então, são parcelas diferenciadas também em termos de titulação de terras. No caso dos quilombolas, a entrega do título de terras garante a propriedade e com grupos indígenas, não. Se ao mesmo tempo os dois têm em comum o caráter de pleito de reconhecimento coletivo, por outro lado, o objeto final é diferenciado para um e para o outro.


Um comentário:

Anônimo disse...

Bom dia!
Excelente oportunidade para falarmos das comunidades quilombolas que depois de "criadas" como espelhos para políticos não estão sendo respeitadas por eles. Quando tiver oportunidade publique matérias sobre a Comunidade Quilombola Kalunga - GO, maior território do Brasil que esta sob a jurisdição de uma Superintendência inoperante que os enrolam até hoje.
Bom trabalho.

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