Obras de empresas públicas e privadas, entre elas a Petrobras, causam prejuízo a mais de 270 comunidades de descendentes de escravos. Moradores reclamam da extração de recursos naturais, mas companhias justificam dizendo que o processo é rigoroso
Ao mesmo tempo em que o governo federal criou o Programa Brasil Quilombola (PBQ) - que prevê investimento total de aproximadamente R$ 2 bilhões em benefícios aos descendentes de escravos -, grandes obras de empresas brasileiras públicas e privadas estão causando impactos em pelo menos 279 comunidades remanescentes de quilombos em 17 estados do país (leia quadro). A Petrobras é o maior exemplo do enorme disparate do Estado. Somente a estatal é responsável pela interferência na rotina de 176 grupos descendentes de escravos situados em 10 unidades da Federação.
O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e o Ministério da Integração também têm construções nesses territórios.
Bisneto de escravos, Wilson Marques, 51 anos, enumera os problemas causados pela duplicação da BR-101 dentro da comunidade Morro Alto, em Osório (RS). "Além dos barulhos causados pelas implosões para abertura de um túnel, destruíram parte de um cemitério e estão extraindo recursos naturais de nossas terras", denuncia o quilombola. As 456 famílias que vivem no local já denunciaram o caso ao Ministério Público Federal (MPF) do estado. "Ficamos de acertar medidas compensatórias aos transtornos provocados por este empreendimento, mas até agora nada foi decidido", diz Wilson. O empreendimento é de responsabilidade do Dnit.
Em nota, o órgão diz que as obras passam por um rigoroso processo de licenciamento, que inclui a análise criteriosa de diversos órgãos, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Fundação Cultural Palmares(FCP), e o Instituto Chico Mendes. De acordo com o texto, para a expedição das licenças, essas entidades impõem uma série de condicionantes, que sempre devem ser incluídas nos projetos de obras e cumpridas, para que os empreendimentos possam ser realizados. "Somente para a obtenção de licenças, o Dnit conta com mais de 500 profissionais de diversas áreas contratados. A obra da BR-101/Sul possui licenciamento e acontece em conformidade com o projeto executivo."
O caso da Petrobras é mais preocupante. Grandes empreendimentos, como o Gasoduto Meio Norte, no Nordeste, e a Expansão do Gasoduto Rio de Janeiro - Belo Horizonte afetam negativamente a vida dos quilombolas. A assessoria de imprensa da Petrobras afirma que em todas as regiões e comunidades em que atua, a empresa adota como política considerar os impactos e os benefícios de seus empreendimentos nas dimensões econômica, ambiental e social. "A companhia patrocina projetos voltados para a preservação das comunidades quilombolas. Um dos principais objetivos dos projetos é o desenvolvimento de ações de geração de renda e oportunidade de trabalho, como a agricultura e o artesanato", diz a nota.
Para o subsecretário de Políticas para Comunidades Tradicionais da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Alexandro Reis, o desenvolvimento que o Brasil deseja alcançar passa pela realização de grandes obras. "Por meio de relatórios enviados pelos ministérios e estatais, tentamos causar menos problemas, mas todas acabam sofrendo impactos, incluindo os não quilombolas", observa.
Quem chega a Paracatu se assusta com a imensa cratera aberta a poucos quilômetros do centro da cidade pela Rio Paracatu Mineração (RPM), empresa privada do grupo canadense Kinross. Além do enorme buraco - resultado da retirada de ouro por mais de 20 anos -, uma grande barragem composta de água com resíduos químicos preocupa os quilombolas. O reservatório não está dentro da área reivindicada, mas tira o sono dos moradores pela sua extensão e possibilidade de contaminação do solo. "Há uns três anos, a água do nosso poço artesiano ficou estranha: barrenta e com um cheiro estranho", conta Maria da Abadia. Questionado sobre o tamanho da barragem e da área devastada pela mineradora, o prefeito de Paracatu (MG), Vasco Praça Filho, não soube precisar a extensão.
Herança, a justificativa
Em relação à reportagem "Comparação política em terra quilombola", publicada ontem pelo Correio, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) esclarece que foi a partir do governo Lula, por meio do Decreto 4.887/2003, de 20 de novembro de 2003, que a política de regularização das áreas quilombolas passou a ser atribuição do órgão, o que permitiu a efetiva regularização fundiária destas terras, além de ter estabelecido a transversalidade da política com abrangência em quase todos os ministérios. "Este aspecto se diferencia substancialmente da política realizada pelo governo anterior, que tinha no Decreto 3.912/2001 a base de sua atuação. O referido decreto apresentava problemas conceituais em relação à política de regularização. Um dos principais era o fato de prever a titulação sem a desintrusão (retirada de ocupantes não quilombolas da área), sendo esta a parte mais importante para o domínio e a posse efetiva das áreas. No processo atual, só há a titulação quando ocorre a desintrusão", diz a nota.
Ainda de acordo com o Incra, a concessão de título para as comunidades remanescentes de quilombos realizada até 2002 não significou para muitas delas a posse da terra. "Situam-se nesse caso 289.651 hectares titulados pelo governo anterior em terras de domínio particular que não foram registrados em cartório porque as áreas correspondentes não foram "desintrusadas" (os moradores antigos não foram indenizados e retirados do local)", explica o texto. Assim, segundo o Incra, esses nove títulos expedidos, relativos a 2.270 famílias, não trouxeram a posse definitiva para estas comunidades. "Esta herança do governo anterior está sendo assumida pelo governo atual, que vem desenvolvendo esforços, por meio do Incra, no sentido de regularizar as áreas promovendo a desintrusão para usufruto das comunidades quilombolas", acrescenta. (RC)
Para saber mais
Mais saúde e moradia
Criado em 2004, o Programa Brasil Quilombola (PBQ) coordena todas as ações governamentais às comunidades remanescentes de quilombos. Organizado pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), a iniciativa tem suas ações nas áreas de saúde, educação, construção de moradias, eletrificação, recuperação ambiental e incentivo à produção local executadas por 23 órgãos da administração pública federal. "Para ter acesso a esses benefícios não é necessário que a área a ser demarcada como quilombo esteja com o título emitido. Uma portaria interministerial (127/2008) garante melhorias nesses locais", afirma a coordenadora nacional de regularização de territórios quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Gilvânia Maria da Silva.
De acordo com o PBQ, que tem cronograma para o triênio 2008/2011, o Incra investiu R$ 4 milhões na implementação dos processos de regularização fundiária. "Em 2009, gastamos R$ 28 milhões. Para 2010, devemos desembolsar pelo menos R$ 66 milhões. Esse salto ocorre porque em novembro de 2009 o presidente sancionou 30 novos decretos regularizando territórios. Como não houve tempo suficiente para concluir as indenizações, esse procedimento deve continuar no decorrer dos próximos 12 meses", explica Gilvânia.
Subsecretário de Políticas para Comunidades Tradicionais da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Alexandro Reis afirma que, em parceria com o Programa Luz para Todos, o PBQ levou energia elétrica a 20 mil domicílios quilombolas no período entre 2003 e 2009. "Além disso, outra importante ação foi a construção de cerca de 1,3 mil unidades habitacionais para esse segmento da população", acrescenta Reis, ao citar o financiamento da Caixa Econômica Federal destinado às áreas de quilombos de 2005 a 2008. (RC)
Fonte: Correio Brasiliense - 26/01/2010
Por Rodrigo Couto
Fonte: Correio Brasiliense - 26/01/2010
Por Rodrigo Couto
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