Fonte: Raça Brasil
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Por Maurício Pestana | Foto Jane Araujo/Divulgação
Congresso Nacional, Brasília, mês de agosto. A energia de estar na mais alta esfera política do país era inerente nos corredores de tapetes azuis, nas salas e antessalas de vidros escuros onde tudo inspira e transpira poder. O entrevistado personificava toda a atmosfera, afinal, há mais de 50 anos, sua vida se confunde com a história de poder político no Brasil: José Sarney, senador e presidente do Congresso Nacional.
O dia foi atípico na capital federal. Uma crise política acabara de ser defl agrada. Um dos assessores nos dá a notícia de que a entrevista seria adiada para a manhã seguinte, pois Sarney estava reunido às portas fechadas com a presidente da República, Dilma Rousseff . O motivo? A possível queda do ministro da defesa Nelson Jobim, fato que se consumaria horas mais tarde. Na manhã seguinte, o senador nos recebeu e nos explicou o porquê da agenda adiada do dia anterior.
Deputado federal (1958-1965) Sarney foi um dos líderes progressista da UDN, defensor, naquele momento, de bandeiras como a reforma agrária. Em 1964, fez oposição ao golpe militar que depôs o presidente João Goulart; um ano mais tarde, entrou para o partido governista, a Aliança Renovadora Nacional (Arena). Governou o Maranhão de 1966 a 1971 e cumpriu dois mandatos como senador.
Foi um dos fundadores (1979) do Partido Democrático Social (PDS), e, em 1984, por ser contrário à escolha de Paulo Maluf como candidato à eleição indireta, saiu do partido e apoiou Tancredo Neves para presidente da República, sendo indicado como vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, pela Frente Liberal. Com a morte de Tancredo, assumiu a presidência do Brasil em 1985.
Um período marcado por medidas econômicas de combate à inflação e pelo estabelecimento de uma nova Constituição. Promulgada em outubro de 1988, a carta mais democrática da história do Brasil instituiu eleições diretas em dois turnos para presidente, governador e prefeito, condenando o racismo como crime inafiançável no país.
Lançou um plano de ampla reforma monetária, conhecido como Plano Cruzado, em referência à nova moeda. Na questão racial são dele várias medidas, entre as quais: a criação da Fundação Cultural Palmares - primeiro órgão federal responsável por políticas públicas para a comunidade negra -, e projeto que estabelecia 20% de cotas nas universidades públicas e privadas e em concursos públicos nos três poderes com financiamento para estudantes nas faculdades. José Sarney é também um amplo aliado e defensor do Estatuto da Igualdade Racial. Contraditoriamente, é no Maranhão, onde tem sua base política, que ocorre atualmente os maiores conflitos em terras quilombolas, fato esse que, entre outras coisas, o senador não se esquivou em responder nessa entrevista exclusiva para a edição de aniversário de 15 anos da revista RAÇA BRASIL.
"NÓS ABOLIMOS A ESCRAVIDÃO E NÃO DEMOS SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA DOS NEGROS NO BRASIL, AO CONTRÁRIO, NÓS CRIAMOS UMA CLASSE QUE FICOU ATÉ HOJE SEM OPORTUNIDADE DENTRO DA SOCIEDADE DO PAÍS DE ASCENDER"
O senhor foi contemporâneo do senador Afonso Arinos, autor da primeira lei que punia o racismo pós-abolição. Também já declarou que ele foi o mais completo parlamentar que passou pelo Congresso Nacional. Que lições Afonso Arinos daria nos dias de hoje na tão conturbada política nacional?
Mais que contemporâneo, fui amigo de Afonso Arinos, um homem extraordinário, de grande talento e cultura que tem um lugar consagrado na história da cultura e da política brasileira. Dominava perfeitamente todas as áreas do conhecimento, escreveu mais de 100 livros sobre todos os assuntos e foi uma pessoa sempre preocupada com o problema da raça negra no Brasil, tanto que a primeira lei contra a discriminação racial foi empunhada por ele, que se orgulhava muito do feito.
Eu percebia até certa rivalidade não declarada entre o Afonso Arinos e o Joaquim Nabuco, porque o Nabuco havia sido contraparente do Afonso. Nabuco tinha escrito o Estadista do Império, Afonso escreveu o Estadista da República. Nabuco tinha lutado pela abolição, Afonso também lutou e dedicou sua carreira na defesa da raça negra e, numa outra etapa, a condenação ao preconceito racial. A lei foi muito importante e marcou a nossa história, dando o caráter criminal para esse tipo de tratamento com relação aos negros no Brasil. O legado de Afonso Arinos nos dias de hoje é, sem dúvida, da grande contribuição que deixou para a história cultural e política brasileira.
Recém-empossado na presidência da República, em 1985, o senhor fez um pronunciamento para comunicar a adesão do Brasil aos Pactos das Nações Unidas sobre Direitos Civis, Políticos, Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e à Convenção Americana dos Direitos Humanos. Raça, gênero e liberdade religiosa fizeram parte do seu pronunciamento, um posicionamento forte para um país que acabara de sair de um regime arbitrário.
Nós fomos um dos primeiros países consignatários contra qualquer discriminação de raça, de religião das Nações Unidas. O tratado foi chamado de Tratado de São José de Direitos Humanos e também de direitos civis. Isso, sem dúvida alguma, era um resgate que o nosso país fazia, mesmo sabendo que jamais pagaremos nossa dívida com a raça negra. Acho que isso é uma mancha que jamais apagaremos da história do Brasil, que foi o problema da escravidão e ela ter chegado até aonde chegou. Esse resgate era necessário ser feito.
Em 1988, quando o senhor criou a Fundação Cultural Palmares, falava da importância de se criar uma elite negra no Brasil para contrapor as desigualdades raciais em nosso país. Ainda acha que essa é uma das saídas?
Quando do centenário da abolição da escravatura, eu era presidente da República, então quis marcar não só com solenidades essa passagem, mas também com um gesto que significasse um avanço diante do problema do negro no Brasil. Sempre considerei que o problema era a ascensão do negro. Nós tínhamos esse sentimento, não tínhamos tido ainda a possibilidade de que a raça negra pudesse ter uma ascensão melhor e participar das elites nacionais, das grandes decisões do país.
Eu fiz, concebi a Fundação Cultural Palmares, que justamente tinha a função de promover a ascensão da raça negra no país, por todos os instrumentos disponíveis que o Estado pode realizar. Depois, completando essa ação, apresentei o primeiro projeto no Brasil e deflagrei o problema das cotas da raça negra. O projeto foi incluído na pauta do debate nacional também por mim, justamente na etapa de promoção da raça negra, com exemplo dos Estados Unidos, que realmente só puderam avançar lá quando estabeleceram um regime de cotas, obrigando a sociedade a aceitar uma participação dos negros compulsória de todos os setores da vida pública daquele país.
E seu o projeto que estabeleceu cotas nas universidades públicas e privadas, inclusive com reserva de, no mínimo, 20% de vagas em concursos públicos nos três poderes e financiamento para estudantes nas faculdades. Por que medidas tão importantes sofreram tantas resistências em setores do Congresso Nacional e na sociedade brasileira?
Olha, há certa incompreensão, inclusive quando eu apresentei esse projeto, porque ninguém entendia ainda o seu objetivo e julgavam, até de certo modo, que isso era uma divisão no Brasil, a sociedade brasileira estabelecendo cotas para determinada raça. Aí, quiseram incluir também os indígenas, porque tinham que participar. Na realidade, o problema nosso é realmente de colocar dentro de cada um dos setores nacionais uma cota que fosse relativa aos negros. Por quê? Porque nós abolimos a escravidão e não demos solução para o problema dos negros no Brasil, ao contrário, nós criamos uma classe que ficou até hoje sem oportunidade dentro da sociedade do país de ascender.
José do Bonifácio, quando no tempo da independência, dizia que duas coisas que completariam a independência não foram feitas: a abolição da escravatura e, ao mesmo tempo, a solução do problema dos indígenas, que era o problema do enfrentamento que existia naquele tempo. Ele dizia que a independência não se completou pela não solução desses fatos, então também no Brasil, nós não completaremos absoluta justiça social enquanto não tivermos a participação dos negros dentro do processo de decisão nacional.
"SE NÓS FORMOS BUSCAR O QUE É A IDENTIDADE, O QUE É O CARNAVAL, A CULTURA POPULAR BRASILEIRA, O QUE É A MÚSICA, O QUE É A CULTURA DA ALEGRIA, A COMIDA E O JEITO DE VIVER, ISSO TUDO É UMA HERANÇA QUE NÓS RECEBEMOS DA ÁFRICA. ELA ESTÁ PRESENTE, SOBRETUDO, NO JEITO DE SER DO BRASILEIRO"
Como político experiente, presidente do Congresso Nacional, que recado daria para que a comunidade negra, tão carente de representação, tivesse maior presença nessas duas casas - Câmara e Senado - uma vez que, segundo dados do IBGE, somos mais da metade da população?
Eu acho que nós estamos avançando, mas recomendaria que os negros, os afrodescendentes participassem mais da política e procurassem ocupar mais espaços e lutassem por esses espaços.
A questão quilombola é um dos problemas de mais emergência de nosso país. O presidente do Instituto de Terras do Maranhão, Carlos Alberto Galvão declarou que o órgão, dirigido por ele, não tinha capacidade para atender 20% da demanda atual por falta de funcionários e recursos financeiros. O que é necessário fazer para resolver esse problema de vez?
Em primeiro lugar, nós teríamos que definir e afastar da questão quilombola muitos aproveitadores que tiram partido disso para se filiar, quando, na realidade, não são descendentes nem têm raízes nos antigos quilombos. Isso faz com que muitas vezes a questão seja enfrentada com aquilo que aconteceu também em relação aos assentamentos dos sem-terras. São áreas muito grandes, e os recursos para auxiliar não são tão disponíveis. Nós precisamos enfrentar o problema dos quilombolas dando aos antigos quilombos o tratamento especial e, dessa forma, o governo vai ter condições de assisti-los. Agora esse assunto está sendo também explorado por muitos aproveitadores que estão entrando nessas áreas como especuladores de terras, não são realmente quilombolas. Às vezes, são até pessoas fora disso que formam associações apenas para poder usufruir, quer dizer, explorar os próprios antigos quilombolas. E eles continuam nessa exploração, repetindo o processo, pois no passado tiveram que fugir dos senhores, hoje precisam fugir dos especuladores, que procuram utilizá-los para interesses políticos e pessoais.
A juventude negra, segundo pesquisas, é a maior vítima da violência no Brasil. Existem dados, inclusive, mostrando a migração da violência de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, para o nordeste brasileiro, como Salvador, Recife e João Pessoa. Como conter esse problema?
A violência é um problema realmente universal e, cada vez mais, se torna maior com o aumento dos grandes centros urbanos, com as pessoas deixando os campos e partindo para as cidades, sem ocupação para todos. Parte dessas pessoas é rapidamente atraída para as atividades criminosas, muitas vezes levadas pelas drogas, pelo álcool e pela desesperança.
Agora, em relação aos negros, justamente por conta dessa injustiça brasileira de ter colocado os negros na parcela dos mais pobres e mais sensíveis a todo esse tipo de violência, é que nós temos que reverter essa situação, até porque o débito do Brasil com a raça negra é impagável, a identidade brasileira não existiria se não fosse a presença do sangue negro em nosso país.
Se nós formos buscar o que é a identidade, o que é o carnaval, a cultura popular brasileira, o que é a música, o que é a cultura da alegria, a comida e o jeito de viver, isso tudo é uma herança que nós recebemos da África. Ela está presente, sobretudo, no jeito de ser do brasileiro, da cultura, da alegria, como eu disse. É uma herança africana na qual temos um grande débito e o dever de resolver esses problemas.
O Brasil, nos últimos anos, tem dado passos significativos na área comercial com o continente africano. O que é necessário para aprofundarmos mais as nossas relações com a África?
O presidente Lula deu um avanço grande nesta política. Eu, quando fui presidente, procurei estabelecer ligações especiais com a África, sobretudo, com países de língua portuguesa. Ajudamos Angola num tempo difícil. O primeiro país a reconhecer a independência de Angola fomos nós. Também financiamos grandes obras de infraestrutura para aquele país, como a hidroelétrica e, ao mesmo tempo, fornecemos assistência técnica não só para Angola, mas para Moçambique e também para o Timor Leste. Além das relações comerciais que nós sempre procuramos manter com a Nigéria, maior país negro do mundo. Talvez seja o país com o maior contingente de negros que voltaram do Brasil para a África depois da abolição, e essa presença ainda é muito forte na sociedade nigeriana. Por essa e outras razões, temos que aprofundar mais as nossas relações com nossos irmãos africanos.
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